Ganância sem fim

Estávamos começando a esboçar um post sobre o ridículo que são as montadoras aumentando preço na quarentena, quando tropeçamos neste artigo.



Fomos ávidos ler o conteúdo para embasarmos nosso post, porém infelizmente o que encontramos foi um monte de groselha e bobagem, o autor trazendo fatos que são irrelevantes para a discussão em si. Digno dos piores momentos da QR editada pelo dublê de fotógrafo e defendendo o Peugeot 206,5, que já entrou pra história como o momento mais vergonhoso e risível daquela revista – e que atualmente está muito melhor, como já reconhecemos aqui várias vezes.

Vamos ao artigo e a nossos comentários:

Em praticamente todos os segmentos de mercado, uma queda acentuada de vendas significa uma corrida para fisgar o cliente novamente. A ação inicial é sempre dar descontos, seguidos por facilitação na aquisição do produto. Na indústria automotiva brasileira, a primeira opção nunca vem. Mesmo com a pior atuação de vendas desde 1957 (99,4% de queda), por conta do isolamento social para combater a covid-19, o que se vê são aumentos nos preços de quase todas as fabricantes. Há algumas ações para pagamento em 2021, entrada facilitada, juros menores, mas não uma redução significativa nos preços.

Começou bem.

Isso leva à ira destilada nas caixas de comentários das redes sociais das publicações automotivas. Marcas são xingadas, complôs para a não aquisição de carros zero-km são deflagrados, e os preços continuam lá, impassíveis. Eu também serei ofendido logo após escrever a frase que está por vir, mas a verdade as vezes dói: a culpa não é das montadoras.
Só que não é a verdade. A culpa é delas, sim. Podemos discutir o QUANTO da culpa é delas, mas que têm culpa, têm e muita.

Seguiremos a lógica do iPhone. O 11, com 128 GB, custa R$ 5.299 no Brasil. Nos Estados Unidos ele é vendido por US$ 699. São 699 dinheiros para eles contra 5.299 dinheiros para nós. O argumento de relativizar não serve? Tudo bem.

O salário mínimo americano (levando em conta que eles recebem lá por hora trabalhada) é de US$ 1.256. Daria para comprar dois iPhones quase. Aqui, o salário mínimo é de R$ 1.045. São cinco vezes menos o valor do iPhone. Já partiremos para xingar a Apple também e chamá-la de mercenária? Ainda não, há outras informações.

O que a Apple tem a ver com o valor do salário mínimo?

Os iPhone são fabricados na China. Apesar do presidente Trump ter colocado tarifas de 25% nesta produção por causa de uma atual guerra mercadológica, eles sempre foram vendidos nos EUA sem imposto algum de importação, com o cliente pegando apenas 9% em média de imposto na hora da compra do celular. No Brasil, apenas o imposto de importação, sem contar os outros que chegam em cascata, é de 35% do produto. Mais de um terço de tudo que você compra importado neste País é só imposto.

Agora sim, um raciocínio melhor. Sim, a carga tributária brasileira é ridícula e excessiva, feita para alimentar um Estado obeso e paquidérmico que desperdiça dinheiro em corrupção.

Achou muito? Pois bem, agora que vem a peça chave da absurda precificação dos carros no Brasil. Mesmo que o veículo seja fabricado no interior de São Paulo, o imposto total ronda os 48% (mais os custos dos componentes comprados em dólar que não são fabricados aqui). Fora isso, para a cadeia funcionar, há o lucro das montadoras, das concessionárias, comissão dos vendedores, margem de negociação, entre outros

Note como a conversa deixou de ser sobre O AUMENTO DO VALOR DOS CARROS DURANTE A PANDEMIA, e passou a ser sobre o alto preço dos carros a qualquer momento. O autor perdeu o foco.

Preço do líder seria bem menor

Vamos para a prática e colocar no líder Onix contas parecidas. O novo Chevrolet custa a partir de R$ 53.050. Com os 48% a menos dá R$ 27.586. Mais 9% do imposto hipotético: R$ 30.068. Este seria mais ou menos o preço final do carro zero quilômetro de entrada no Brasil. Ainda não seria uma pechincha, claro, pois há outros problemas estruturais por aqui que aumentam os custos de tudo, como por exemplo a alta tarifa da energia elétrica. Mas em cascata, isso faria um Onix 2015 inteirinho ser vendido nas lojas de seminovos por R$ 12 mil. Um sonho!

No entanto, a realidade é outra, de aumentos seguidos de preços. Com o dólar a quase seis reais e com as vendas 99% menores, não há margem para as marcas segurarem os preços e empregos. Não, não estou dizendo que a montadoras são santas imaculadas. Todas as empresas do mundo querem lucro e seu acionistas desejam comprar uma mansão maior e um iate mais luxuoso no fim do verão. Mas se você quer comprar um carro novo e não consegue porque é muito carro, o mais justo é xingar o sistema tributário brasileiro, não as montadoras.

O texto acaba aqui, ainda bem. Veja que o aumento de preços durante a pandemia nem foi mais mencionado.

Nós concordamos com o autor, obviamente, que o principal vilão do preço dos carros no Brasil é a carga tributária bizantina. Isto, aliado à bizarra gasolina com 27% de etanol, resulta num mercado grande, pois somos um país grande, porém extremamente limitado. A montadora acha suficiente oferecer meia dúzia de modelos e vender tudo de baciada, aquele monte de carro igual na rua. E mercados muito menores, porém não castigados pelos impostos bizarros e gasolina que só existe aqui, contam com uma variedade de modelos muito maior.

Mas o ponto não é esse. O ponto é que tá tudo fechado, ninguém vendendo nada, e os caras acham digno aumentar os preços para afastar os poucos compradores que ainda restam.

Por muito tempo nós dissemos que uma crise seria boa para reduzir o preço dos carros. Quando ela veio, em 2015-16, nós percebemos que estávamos errados. As vendas caíam e o preço dos carros subiram, numa lógica bizarra que só faz sentido quando você admite a ganância medonha que move essas empresas. E essa lógica da maldade está de volta: preços ainda mais altos, queda nas vendas e apelos ao governo (!!!!) para liberar o funcionamento de fábricas e concessionárias, para que eles possam vender carros a preço de ouro. Não só tiram o couro do consumidor na compra do carro, como ainda querem que o dinheiro dos seus impostos ajude a retomar a produção.

Quando a pandemia passar e o mercado retomar alguma normalidade, o que veremos serão pátios cheios e um ímpeto inicial, curto, de consumo reprimido. Depois o que teremos serão vendas pífias, brasileiros sem acesso a carros decentes devido a estes estarem com preços absurdos. E tome poucas vendas, fábricas ociosas, e aquela pasmaceira toda.

Quanto a impostos, alta de dólar, custo de energia e tudo mais, são fatores que afetam todas as fabricantes. Se ela opta por importar um componente ao invés de fazê-lo no Brasil, é porque tomou a decisão com base em fatores econômicos e viu que a importação saía mais barata. Portanto, culpar a “alta do dólar” é argumento conveniente e falacioso, que jornalista incompetente aceita porque depende dos carros emprestados pelas montadoras para sobreviver.

E assim o verdadeiro entusiasta se vê cada vez mais limitado e impotente. Muitos abrem mão da paixão para rodarem com qualquer coisa pois é o que conseguem comprar. E assim seguimos, nadando de braçada na mediocridade causada pela ganância sem fim das fabricantes de automóveis instaladas no Brasil.

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